sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Cantiga de amigo


Par Deus, coitada vivo:
pois non ven meu amigo:
pois non ven, que farei?
meus cabelos, con sirgo
eu non vos liarei.

Pois non ven de Castela,
non é viv’, ai mesela,
ou mi-o detem El-rei:
mias toucas da Estela,
eu non vos tragerei.

Pero m’eu leda semelho,
non me sei dar conselho;
amigas, que farei?
en vós, ai meu espelho,
eu non me veerei.

Estas dõas mui belas
El mi-as deu, ai donzelas,
non vo-las negarei:
mias cintas das fivelas,
eu non vos cingirei.
Pero Gonçalves Portocarreiro

“Par Deus, coitada vivo...” coitada no sentido de hoje, que merece pena... mas, merece por amor, então vivo coitada, apaixonada, “pois” porque não vem meu amigo (amado)... Que farei?
Ela se pergunta e ela mesma responde: ‘- meus cabelos’ (é um vocativo) com sirgo eu não vos liarei (ligarei).
Sirgo é uma fita que simbolizava que a pessoa estava presa        ao amado, era mais ou menos como um anel de noivado. Isso é muito simbólico porque antigamente as mulheres não andavam com cabelos soltos, então, o atar os cabelos significava que a pessoa estava presa àquela a quem lhe deu o sirgo e só soltaria seu cabelo em homenagem a ele. Como ele não dá notícias, ela decide: ‘eu vou romper o noivado com ele’.
É uma cantiga de amigo ou de amor? De amigo, certo? É ela falando, a coitada, falando sobre o amigo, desesperada porque ele não dá notícias... ao ponto tal de desistir do amigo.
É paralelística? Não, porque tem que fazer um par e aqui tem 5 – como pode ser paralelística?
Outra estrofe... Castela é um reino de Portugal, centro da expansão castelhana... onde a rainha Isabel casou com o rei Fernando Aragão; então, os reinos se uniram, se expandiram com a política do casamento e ficou não propriamente a Espanha, mas sim, vários reinados e, Castela, que andava em luta com Portugal, sempre brigaram. Primeiro Portugal brigou para conquistar sua independência, depois, brigou para manter e depois, ficou dependente de ‘Castela/Espanha’ (quando D. Sebastião morreu; o Brasil também pertencia à Espanha naquele tempo [1580-1640]). Percebemos essa luta aqui, não vem de Castela: ‘non é viv’, ai mesela = não é vivo, morreu... ‘ai mesela’, ai coitada de mim – mesela, miserável... ou é o rei que o segura lá e não deixa que ele venha pra mim.
Conclusão: ‘mias toucas de Estela’ – touca era uma vestimenta para cabeça e havia toucas célebres, essas toucas de Estela – é uma região de Portugal famosa por fabricar lindas toucas.
Por que ela não vai usar as toucas da Estela? Porque foram lembranças dele e, usá-las seria dizer que ainda o ama, que ainda espera por ele, mas, ela cansou de esperar.
Próxima estrofe:
“Pero m’eu leda semelho” – mas eu pareço alegre...
Como? Ele morreu por lá e parece que estou alegre!
 Então ela fica espantada com aquela leveza que tem quando rompe com o namorado.
Mas, e se ele está vivo? Não sei o que fazer... Então, pergunta às amigas e ela mesma responde.
O espelho não era um presente qualquer na época, era valioso e muito simbólico porque o espelho dado por ele e ela se vê no espelho, se vê nele que é uma integração dos dois, por isso eu não vou me ver no espelho... eu não quero mais isso e, pergunta para as amigas, mas ela já sabe o que vai fazer: vai romper.
Próxima estrofe:
“Estas doas mui belas”... É um verdadeiro quadro aqui: é uma moça que se encontrou com as amigas e está se despindo das lembranças dele – ‘estou apaixonada, sofrendo por amor porque meu amigo não vem, e se ele não vem o que eu faço?’ Ela mesma decide: fala consigo mesma, com os seus cabelos – humaniza os cabelos e é como se eles fossem o símbolo da ligação com o amado.
Estrofe final:
...eu não vos negarei os presentes (as doas), ela não quer mais porque não quer lembrar-se dele e usar as coisas que ele deu (porque significaria que ainda continua amando...).
“– mias cintas das fivelas...” Era amigo generoso, certo? As roupas da Idade Média eram chamadas ‘balaios’ e iam até o tornozelo; eram amarradas na cintura com um cordão porque uma cinta de fivela era muito caro e também difícil de fazer.
A cinta de fivela lembra o que? Põe ao redor da cintura, vai se cingir com ela; é um contato carnal e, uma cinta também era um presente simbólico, quer dizer, é estar abraçada por ele, a cinta era o abraço que ele dava na cintura. Ela quer ficar livre disso...
É um poema cuja função referencial é rica: nós ficamos sabendo que as mulheres daquele tempo atavam os cabelos e não era só por enfeite, mas também porque era símbolo de estar comprometida; sabemos também, que havia luta entre Portugal e Castela; e era possível que os rapazes ficassem por lá (na luta); que havia uma fábrica de toucas em Estela e que dar presentes era algo comum – e naquele tempo havia um costume civilizado de que, rompido o compromisso, devolvia-se tudo e que as cintas de fivela eram um presente bastante rico...

Qual a Função predominante? Emotiva. Está presente a Função Conativa? Sim, as amigas. Sobre a Função Referencial já falamos; a Função Fática é sempre banal – como é que as cantigas chagaram até nós? No século XIII, chegava por meio de canções (poucas pessoas liam).
Não é paralelística, é um pouco mais difícil, mas nós vamos reparar que a construção é semelhante de cobra para cobra. Até hoje, na língua castelhana, existe a palavra copla que passou para cobra (estrofe) e terminologia usada na época.
Mas o que nos interessa na literatura é a Função Poética. Sabemos que essa, é uma cantiga de amigo pelo assunto; não é paralelística, mas tem uma construção bem poética: o 1º verso rima com o 2º? Sim. A 3ª palavra com a 5ª? Sim, rima consoante. Sirgo rima com amigo. Observe se a rima é apenas sonora ou tem valor semântico – valor de significado, ligação de sentido? Tanto vivo, amigo e sirgo – o amigo vivo de deu o sirgo; farei/liarei ou não farei/não liarei, então a ligação da consequência: ‘o que é que eu faço? Eu ligo se meu amigo está vivo, se não está eu não ligo mais... não prendo os cabelos.’
O esquema da rima vai ser o mesmo (AABAB), pode-se falar em refrão aqui? Se muda não é. Porque o refrão é a repetição total – se quiser falar em semi-refrão, pode. Seria só: “Eu non”, a ideia é a mesma porque o verbo vai mudar em razão do objeto: liar/sirgo – trazer/touca – vier/espelho e cingir/fivelas... mas, fundamentalmente o sentido é o mesmo: ‘não vou usar coisas que me lembrem ele.’
E qual é a razão do refrão? Enfatizar uma ideia, pois, ajuda a memorizar. O refrão bem feito é aquele que faz uma ligação perfeita com o anterior – veja a primeira cantiga: há uma continuidade semântica e continuidade sintática do dístico, então há uma soma de ações – é paratática porque há uma coordenação.
Sobre a autoria das cantigas, apenas homens escreviam interpretando a mentalidade feminina, descrevendo como era a sociedade de antigamente, etc...

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Jus'a lo o mar é o rio


Jus'a lo mar é o río;
     eu namorada irei
u El-Rei arma navío.
     Amores, convosco m'irei.

Jus'a lo mar é o alto;
     eu namorada irei
u El-Rei arma o barco.

  Amores, convosco m'irei.

U El-Rei arma navío
     eu namorada irei
pera levar a virgo.
        Amores, convosco m'irei.
 


U El-Rei arma o barco
     eu namorada irei
pera levar a d'algo.

  Amores, convosco m'irei.
Por Joán Zorro

             É uma Cantiga de Amigo – parte da amada que fala sobre o amigo; normalmente uma cantiga queixosa, é o amor não correspondido.
Jus à lo mar é o rio – até o mar onde o rio se encontra. ‘U’ é uma forma francesa que significa ‘onde’ (forma francesa será importante daqui a pouco quando trataremos de Cantiga de Amor). ‘Onde o rei arma navio’ é preparar o navio para navegação; 

‘Amores, convosco mi irei’ – ‘Amores’ está escrito “A” – é amor no campo abstrato, ela não vai com os amores dela no plural; deixe-me levar pelo ‘Amores” que eu tenho pelo amado, convosco mi irei – aqui não é propriamente uma lamentação, mas é o desejo de estar com o amado, na verdade é um desejo e não estar com ele, significa não está totalmente feliz.
                É uma cantiga paralelística porque se desenvolve em paralelo; 1º verso depois muda só a coda (última palavra), é a forma popular para “navio”. 
Rimas: 1 e 2 – aqui 1’ porque é quase igual na forma significante ‘rio’ é tomado como sinônimo de alto e ‘navio’ é tomado como sinônimo de barco. Então 1’ é igual significado de 1, mas diferente na última palavra, na coda quanto ao significante. Então paralelítica.
 
Como seria o próximo verso da outra estrofe? R1 que é o refrão – que, normalmente vem no fim da estrofe – aqui nós temos um caso incomum de refrão: entremeado entre o disco (dois versos). Então, disco e refrão entremeando.
Qual é o próximo verso, é possível saber? Não, é um verso novo, eu sei que vai rimar com navio.

“pera levar [des] a virgo
“Amores, convosco me irei”.

[des]: isso vai acontecer muito na literatura medieval porque os documentos eram feitos pelos copistas, a profissão deles era justamente copiar documentos. Muitas vezes eles sequer sabiam o que estavam copiando ou não entendiam, ou copiavam sem querer entender; então, muitas vezes eles pulavam alguma coisa, não escreviam corretamente, e, esse refazimento do documento que era feito com essa cautela: [  ].
Aqui deve ser “Levardes vós amores” – porque a forma de tratamento é vós amores convosco mi irei; assim, para vós levardes; esse des é necessário em relação ao ritmo também, por isso é bem certo que deveria ser ‘levardes’, mas por cautela, quem refez colocou em [  ], significando que não está no original mas, é bem possível que tenha sido assim.
Quando eu disse que aqui viria um verso novo, sabíamos que a última palavra tinha que rimar com ‘navio’.
Há rima?
A rima é consoante: Quando a consoante também rima – abacate/chocolate – não combina, mas rima. É a rima mais comum.
A rima é toante: Quando só as vogais rimam.
Na época era a considerada mais importante: navio/virgo.
Outra estrofe: 2’ – rima toante: barco/d’algo. 
Fidalgo: Filho de alguém importante – d’algo significa que não é um qualquer, é uma pessoa de ascendência importante.
Poderia se alongar? Indefinidamente, certo? Parecendo o quê? Um desafio. Os violeiros vão cantando indefinidamente até cansar.
Que graça tem essas cantigas? Está subentendida a história. Ela está disposta a largar tudo e embarcar no navio; quer escândalo maior? Naquela época, estar armando navio era recrutando pessoas, os navegantes em geral são aventureiros e ela evidentemente não vai atrás dos navegantes, mas, de alguém que ela julga importante, e ela diz: - eu namorada irei convosco porque eu amo e o resto não importa; se vou ficar lá sozinha com você no meio de 500 homens... nem tanto!
Percebemos que é uma mulher tomada pelo amor de tal maneira, que, ela se propõe a contrariar toda a sociedade da época e é exatamente isso ela repete o tempo todo; refrão 1 e 2 (eles na verdade têm o mesmo sentido: no R1 = cheia de amor e no R2 = cheia de amor irei. A única palavra que propriamente é diferente no R2, é “convosco”, então, é a ideia dominante, obcecante e, esse poema que parece simples (na verdade é), mas há uma simplicidade figurada, rebuscada; o autor está querendo demonstrar a pessoa que está tomada por um sentimento tal que ela não consegue dizer outra coisa a não ser ‘eu te amo’.
É isso, certo? Dito de uma maneira mais elegante, mais interessante, mas é a demonstração da simbologia feminina no campo da paixão amorosa através da repetição, que chega a ser cansativa, mas, não para ela que está amando... Todos querendo dizer: - Tire isso da cabeça! Mas não dá.
Novidade em relação à outra cantiga? Nós temos o refrão distanciado e onde é que fica aí a confidente – que é uma característica da cantiga de amigo? Lembram-se da outra cantiga? “Quantas sabedes...” está confidenciando com as companheiras, para irem com ela até Virgo, que é o mar levado. Então normalmente a alma ou a mentalidade feminina quer desabafar, a mulher precisa contar para outra que pode ser uma amiga, às vezes a mãe e outras vezes é um pinheiro...
Há um poema famoso em que a moça conversa com um pinheiro, que é alto e, por isso ela pede notícias a ele que, lá de cima, deve enxergar onde estará o amor dela (e o pinheiro responde). Isso acontece com as pessoas que estão isoladas e sempre acham com quem conversar. Normalmente é uma amiga, mas, aqui não aparece. Como eu disse é um poema ousado em que ela se propõe a seguir o amado seja lá quais forem as consequências, e fala diretamente com o amado – não fala propriamente só sobre ele: “pera levar [des] a Virgo”, isto é: ‘estou aqui para que vós me leveis’ – por isso ela passa por cima da confidente. 
Ela é uma pessoa que está sofrendo pelo amor? Não. Ela não quer sofrer pelo amor - ela quer ir com ele para saciar o seu amor.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quantas sabedes amar amigo...

                

Quantas sabedes amar amigo
treides comig'a lo mar de Vigo
     e banhar-nos-emos nas ondas.

Quantas sabedes amar amado
treides comig'a lo mar levado
     e banhar-nos-emos nas ondas.

Treides comig'a lo mar de Vigo
e veeremo-lo meu amigo
     e banhar-nos-emos nas ondas.

Treides comig'a lo mar levado
e veeremo-lo meu amado
     e banhar-nos-emos nas ondas.

 Por Martim Codax

Veja que é uma estrutura simples, tudo se repete. Era uma canção para ser guardada mesmo, muito simples. Portugal tem muito analfabeto até hoje e, naquela época até os reis, nem todos mas, muitos reis eram analfabetos. Quem sabia escrever era a mulher - de certa nobreza porque não tinham nada o que fazer, ficavam em casa, algumas até se davam ao luxo de aprender a escrever, liam, etc. e, em geral os religiosos, os padres... claro que tinha pessoas muito cultas, estudiosos, havia universidades – não logo no começo, a universidade em Lisboa de Coimbra é do fim do séc. XII.
A Galícia, que é uma parte da Espanha (são três: Galícia, Catalunha e o resto da Espanha). Até hoje há diferenças na língua, o Castelhano que veio de Castela que era apenas um reinado no centro da Espanha, mas por causa da expansão política do reinado com o reinado de Leão de Aragão, vai se expandindo. Mas essa região da Galícia fica meio a parte com a língua galega, bem diferente do castelhano. Pode-se dizer que o galego é mais próximo da língua portuguesa do que o castelhano. Então em relação com a LP, o galego é mais próximo, em segundo o castelhano e depois o catalão. Nessa época, na verdade, Portugal não existia e, era uma língua só, uma cultura propriamente única, tanto que esse poema é da literatura portuguesa mas, Vigo atualmente é localizada na Espanha.  E, ficou a referência a esta cidade, esse autor (Martim Codax) que sempre fala em Vigo, que é a terra dele. Vemos nessa cantiga o galaico-português – daí a nossa dificuldade de entender plenamente. Comentando a cantiga:
Amigo – é o que hoje entendemos como namorado. Lembremos que amar e amigo têm o mesmo radical. Venha comigo ao mar de Vigoque na época deveria ser famoso como Caraguá. Mar levado – levado é um mar encapelado, com certas ondas... É o mar que é levado. Mas você já começa a por malícia aí e a perceber que não era apenas o mar propriamente que era levado – era o amigo também. Veja que levado está rimando com amado, o amigo de Vigo. Na verdade o mar de Vigo é levado, mas aqui nós vemos pelo princípio da melopeia (as palavras ‘amado’ e ‘levado’ se ligam pelo som e devem se ligar pelo sentido). Ele não vai namorar para olhar as ondas mas, entrar nas ondas do mar e nadar junto. Terminamos a função Metalinguística. Função Poética – a construção do poema: Numerando: 1 – 1’ ... diferente na forma (significante), mas igual no conteúdo (significado). Este tipo de cantiga se chama Cantiga Paralelística – temos o paralelo da 1ª estrofe com a 2ª... depois começa um novo paralelo – indefinidamente (?). Podemos pensar naquelas célebres canções de desafio, que é herança de Portugal. Uma pessoa lhe diz algo, retoma e multiplica. Outra pessoa devolve e fica nisso indefinidamente.  É um exemplo de cantiga chamada de Cantiga de Amigo.
As cantigas dessa época eram: de Amigo, de Amor ou de Escárnio e Maldizer.
Cantiga de Amigo – ‘de’ significa a respeito de... é a moça que fala sobre o seu amado. Sempre predominará a Função Emotiva. ‘Quantas sabedes...’ Função Conativa, mas nesse destinatário o remetente está incluído. Ela pensa: ‘elas vão compreender a minha paixão amorosa e vão comigo ao mar de Vigo porque eu sozinha não posso ir, preciso de alguém para despistar – antes acontecia isso- vamos comigo que minha mãe deixa ir. Em geral é a mulher falando do amigo que não veio, marcou um encontro e não apareceu, que não liga mais pra ela, que é ingrato...